A TELA, A TERRA E O MURMÚRIO
(Clarisse Fukelman)
(Clarisse Fukelman)
Não há limite entre as artes. É o que Claudia Dowek parece dizer com suas telas escultóricas. Promovendo o diálogo múltiplo de matérias e formas e o permanente exercício de experimentação, por mais de uma década a artista decanta as forças humanas originárias, primitivas – dança, onírico, pré-linguagem, usando técnicas e temas diversos.
Na série Nação Jongo a inquietação se depura, fica mais corpórea. O processo envolve ingredientes da flora e do artesanato brasileiros, estimulando a percepção sensorial. O resultado é a fusão dos sentidos: o que se vê é o que se toca. As folhas e as rendas, aplicadas e mescladas ao pigmento e à resina, são rendas em folhas e também folhas de renda. Visão e tato atraem o espectador na fruição de obras que mesclam objetos (palha, conchas) e desejo: tocar a origem da arte e invocar a comunhão homem/ natureza.
A recusa da forma acabada também instala movimento e tempo, na cena pictórica. Propositalmente, a artista expõe o seu fazer. Faz ver a pressão do braço, os volteios da mão organizando relevos, volumes, tonalidades do branco. A fisicalidade comanda a construção de seu universo visual. O relevo e a escultura intrometem-se na planície do quadro. Uma tensão eclode da terra rachada enquanto contornos traçam, por gestalt, rostos, mapas, rios.
Nessa atitude podem-se sondar genealogias e interlocuções: Lygia Clarck, Helio Oiticica, Nuno Ramos, Armando Reveron, Anselm Kiefer. Artistas do tridimensional, artistas que testam e misturam materiais, artistas que aproximam culturas.
Claudia Dowek soube identificar no Brasil o terreno ideal para a escuta de outros lugares e tempos. O elo com a ancestralidade da arte se dá em vários níveis. A busca é arqueológica e cinética. Claudia se desloca, viaja, põe o pé no chão e na massa. O ato de criação tem início com a coleta de materiais, o que mobiliza a artista no corpo e no espírito. Daí compor quadros como quem constrói a casa a partir do barro: um lote de tijolos, um quilo de sol e um projeto de renovação de linguagem. O entalhe e a pedra das primeiras manifestações de arte murmuram sob suas modelagens e seu barro. É memória.
Há também o ânimo antropológico, no reencontro com a formação cultural brasileira: jongo, ciranda, cantoria. Em obras como Louvação, por exemplo, a escavação acontece em território banto. Dowek traz a taboa do Quilombo do Campinho; a concha do Quilombo de Mandira; resíduos das minas férreas de Ouro Preto.
No plano propriamente estético, concilia densidade e leveza e aproxima palavra e imagem, dialogando com tradições antigas e atuais (hieróglifos, grafite, processo escritural da arte contemporânea). Mas a artista se distingue ao encampar o sentido das palavras. Letras e frases, nela, são formas e são sentidos, símbolos gráficos e mensagens. Falas que formam a nossa vida, mesmo que inconscientemente. No todo, observa-se a organicidade “que une, subterraneamente, todos fragmentos do heterogêneo”, a “conjunção nova com elementos do passado”, como diria Maffesoli.
Numa retrospectiva, as primeiras obras já indicam esse filtro do real pela ótica da pulsão. De modo sutil, sugestivo. Eros e Tánatos confrontam-se camufladamente, o que intensifica a potência dramática das criações. Esteticamente, o vigor subterrâneo surge na diluição de formas, nas sombras, no flagrante do pânico no centro das pupilas do rosto minimamente esboçado (quadro Cheirando cola 2). Ou, ainda, no vermelho que cobre a tela, misto difuso de paixão, apelo e sofrimento (série Balanço de 98).
Disso tudo: Claudia Dowek apresenta um olhar peculiar, no contexto de outras produções contemporâneas. Ela “ciranda”. Vai além da sobreposição de materiais. Ela funde plano e profundidade, popular e erudito. Tudo se integra, graças a uma argamassa feminina, para além da terra – na tela, no entredito, na caligrafia, no vermelho escuro da memória.
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